Por Giulia Afiune
Em entrevista exclusiva para a Agência Pública, a médica pneumologista, pesquisadora e docente da Fundação Oswaldo Cruz Margareth Dalcolmo afirma que se fizermos um esforço coletivo para um isolamento mais intenso agora, enquanto o número de casos de Covid-19 está crescendo, é possível que possamos começar a sair do isolamento, gradualmente, dentro de 2 ou 3 semanas.
“Neste momento, que é o momento muito agudo dessa epidemia, não há nenhuma outra maneira de impedir a transmissão. Não há nenhuma outra arma”, explica, reiterando que ainda não há nem remédios nem vacinas de eficácia comprovada contra o novo coronavírus. Ela alerta que quebrar o isolamento agora, como propõe o presidente Jair Bolsonaro, pode levar a um colapso do sistema de saúde e provocar mortes que seriam evitadas.
Margareth explicou ainda que manter em casa apenas idosos, o “isolamento vertical” que sugeriu Bolsonaro, foi considerada uma medida ineficaz e perigosa para combater o coronavírus em outros países. “O maior exemplo é a Inglaterra que voltou atrás, verificando que [o isolamento vertical] não ia resolver. Eles voltaram atrás pelo risco que isso incorreria diante de uma doença nova de alta transmissibilidade, cujos riscos não estão completamente determinados. Agora, dada a progressão da epidemia, a Inglaterra está propondo o isolamento mais radical.”
Durante a entrevista, Margareth explicou que já existe um coronavírus “brasileiro”, fruto de mutações do vírus importado. “Como a doença chegou ao Brasil pela classe média, ela é uma doença importada, e a transmissão sustentada ou comunitária começou com um espaço de tempo um pouco maior. Agora vai depender da velocidade com a qual ela vai se espalhar nas comunidades de grande aglomeração. Essa é a variável da qual dependemos agora”.
A entrevista foi realizada com apoio dos Aliados da Agência Pública, que também enviaram perguntas. (Conheça o programa)
Durante algumas semanas, o Ministério da Saúde deu recomendações a favor do distanciamento social e isolamento domiciliar. Agora, teve uma mudança de tom. O presidente está dizendo que “o Brasil não pode parar” e planejando a flexibilização da quarentena a partir do dia 7 de abril. Quais são os riscos do “isolamento vertical” proposto pelo Bolsonaro?
São coisas diferentes. O que o nosso presidente propôs foi uma quebra no isolamento social.
O risco que isso traz é que a doença que já chegou a essas áreas mais vulneráveis e pobres vai se disseminar com uma velocidade fora de controle. Ela vai lotar os serviços de saúde. O SUS, que é quem tem que dar resposta para 80% da população brasileira nessa grande epidemia atual, não tem condições de arcar e nós vamos ver um colapso generalizado, aumentando mais ainda a mortalidade que poderia ser evitada.
Nós estamos falando de um patógeno que é altamente transmissível e transmite com uma velocidade e uma intensidade maior do que a gripe comum. É considerado que uma pessoa pode transmitir para três ou quatro.
Realisticamente, vacina é uma coisa para se pensar para, no mínimo, daqui a dois anos. E da mesma maneira, não temos tratamento. Então assim, a única coisa a fazer, a meu juízo, é manter o isolamento social. Neste momento, que é o momento muito agudo dessa epidemia, não há nenhuma outra maneira de impedir a transmissão.
Então é preciso que nós separemos e isolemos as pessoas para interceptarmos essa cadeia de transmissão. Não há nenhuma outra arma.
Quebrar o isolamento domiciliar agora significa que haverá mortes que poderiam ser evitadas e não serão?
Sim. Mas isso não vai acontecer porque [a voz do presidente] foi uma voz que me pareceu muito isolada. Não é aquilo que foi secundado nem pelo Ministério da Saúde. Nosso Ministro ouviu a comunidade acadêmica, está trabalhando muito próximo de nós, e o Ministério da Saúde, formalmente, continua recomendando isolamento social.
E o que é o isolamento vertical?
Ele [Bolsonaro] está propondo que deixem apenas as pessoas idosas isoladas. Nós não concordamos com isso como medida de saúde pública porque outros países que pensaram em fazê-lo já voltaram atrás – é o que está ocorrendo agora no estado de Nova York.
Estou falando do ponto de vista técnico. Tecnicamente, nós vamos seguir a experiência dos países que nos antecederam e que, inclusive, pensaram em fazer isolamento vertical. E o maior exemplo disso é a Inglaterra que voltou atrás, verificando que [o isolamento vertical] não ia resolver. Eles voltaram atrás pelo risco que isso incorreria diante de uma doença nova de alta transmissibilidade, cujos riscos não estão completamente determinados. Agora, dada a progressão da epidemia, a Inglaterra está propondo o isolamento mais radical.
A economia terá que ter soluções alternativas, obviamente, como todo mundo está buscando, para resolver o problema durante esse período.
O isolamento vertical é muito eficaz quando se trata de uma epidemia menor. Mas numa doença com uma transmissibilidade tão alta quanto essa, é impossível. Os próprios epidemiologistas, grandes pensadores, já reviram essa posição agora. Todo conhecimento diante de uma situação tão nova é muito dinâmico. Tudo é revisto quase que permanentemente.
E o que é a “imunidade por rebanho” que a Inglaterra estava buscando?
A “imunidade por rebanho” significa que nós todos seremos infectados num determinado momento. Nós desenvolveremos anticorpos, teremos contato e não necessariamente desenvolveremos doença.
A imunidade de rebanho acontecerá, é esperado em qualquer doença nova transmissível, só que leva muito tempo. Você faz imunidade por rebanho quando você tem uma vacina, por exemplo. Se está todo mundo vacinado, existe a imunidade de rebanho, sim. Agora, numa doença nova com esse grau de transmissibilidade, nós não podemos ainda falar nisso.
Não está provado que o isolamento vertical gere esse resultado [imunidade por rebanho]. São coisas diferentes e independentes.
O Ministro da Saúde chegou a falar de algumas medidas mais graduais, menos radicais. Você concorda com isso?
Não, eu não concordo. Eu acho que haverá o bom senso dentro das famílias, instituições públicas, instituições privadas que concentram grande número de pessoas. No caso desses serviços considerados essenciais que precisam permanecer funcionando, tem que ter alternativas. Liberação parcial, alternativa de grupos de trabalho, essas são as medidas que eu vejo como sensatas. O resto é o isolamento social, sim.
A pergunta que mais recebemos dos nossos leitores foi: quando isso vai acabar? Vamos por partes: Em que estágio da curva epidemiológica nós estamos hoje?
Nós ainda estamos no estágio de crescimento. A epidemia cresce no Brasil, ela não alcançou o pico da curva epidêmica até o momento. Ela está crescendo, ela está se disseminando e é por isso que o mínimo de tempo previsto para um isolamento social mais radical é de pelo menos mais duas a três semanas, realisticamente falando. Os epidemiologistas calcularam que o pico da curva epidêmica se dê no Brasil até o meio do mês de abril. E, a partir daí, nós imaginamos que com essas medidas possamos começar a suavizar um pouco esse ponto agudo da curva epidêmica.
O Ministro da Saúde falou que o número de casos vai subir em abril, maio e junho, começar a desacelerar em julho e agosto, e cair mesmo em setembro. É por aí ou na Fiocruz vocês trabalham com um cenário diferente?
Depende de várias variáveis, da velocidade de propagação, do número de mortes que vai haver, da paralisação de serviços. Um prognóstico preciso depende de muitas variáveis.
O que significa controlar uma epidemia? É impedir que a propagação em larga escala continue. Eu acho que talvez em dois meses nós consigamos fazer isso e aí a doença passa a ter uma certa endemicidade. Não é mais uma epidemia, já há muita gente infectada desenvolvendo anticorpos, sem desenvolver doença. Esse é o esperado que ocorra.
Eu diria que o Ministro foi até bastante pessimista de imaginar que nós ainda teremos todos esses meses pela frente. Mas a própria China hoje já está monitorando e imaginando que possa haver uma segunda onda. A China não relaxou as normas de isolamento social até o momento. Ela está gradual e muito cuidadosamente fazendo isso porque se sabe, epidemiologicamente, que pode haver uma segunda onda.
Controlar a epidemia não quer dizer que o problema está resolvido. Continua a ter muitos casos, mas o número de mortes começa a diminuir e o impacto social e humano começa a diminuir também.
Já é possível avaliar se o isolamento que muitas pessoas adotaram na última semana teve efeito?
Não, a gente não tem essa informação. A gente não tem essa informação porque o número de casos oficial ainda está muito distante da realidade. Esse processo, esse timing entre o caso existir e ser notificado, ser confirmado, leva muitos dias.
Nós imaginávamos os dois mil casos [atuais], isso deve significar mais ou menos 10% da realidade. Sem dúvida, já deve ter ultrapassado dez vezes esse número no Brasil.
Então vai demorar um pouco até a gente conseguir saber se estamos realmente “achatando a curva”? Há uma previsão?
Certamente essa semana que nós já fizemos de isolamento já diminuiu a velocidade de transmissão. Isso é um fato, não há dúvidas disso. Nós esperávamos ter mais casos do que tivemos.
Como a doença chegou ao Brasil pela classe média, ela é uma doença importada, e a transmissão sustentada ou comunitária começou com um espaço de tempo um pouco maior. Agora, vai depender da velocidade com a qual ela vai se espalhar nas comunidades de grande aglomeração. Essa é a variável da qual dependemos agora.
Se mantermos a lentificação do processo de transmissão, nós conseguiremos que os serviços de saúde estejam preparados para receber os 20% de casos graves que vão exigir internação hospitalar. Caso contrário, nós vamos entrar em colapso como hoje já se verifica numa cidade rica, desenvolvida, com uma infraestrutura espetacular como Nova York. Nova York teve um colapso de serviço de saúde, um número de mortos enorme, um número de infectados enorme e os serviços de saúde não têm sequer o número de respiradores necessários para tantos casos graves.
Em termos de dados e projeções de ações do governo, faz sentido comparar o cenário do Brasil com algum outro país?
Não. Nós temos particularidades próprias. Nós não temos testagem massiva. O mundo ideal seria se nós tivéssemos 200 milhões de testes para testar a população toda. Mas isso não existe, isso não vai ter. Nossa situação não pode ser considerada semelhante à da Coreia, por exemplo, que testou todo mundo. Nós somos uma população muito maior, muito heterogênea, densidades demográficas muito diferentes. O Sudeste é muito diferente do Norte, e por aí vai.
Certo, mas existem lições que a gente pode aprender com esses países. O que a gente pode aprender com eles?
Nós aprendemos com todos os países que nos antecederam nessa epidemia. Nós aprendemos, sobretudo, com a Itália e a Espanha que demoraram a reconhecer o problema e onde a situação é essa tragédia humana que nós estamos verificando. A situação da Espanha também é muito dramática hoje.
O Brasil está tentando, a meu juízo, tomar medidas que não repitam esses modelos trágicos. É por essa razão que nós nos antecipamos no sentido de propor o isolamento social, de mobilizar a iniciativa privada no sentido de criar uma cultura nova.
Quando você verifica 4 bancos se unindo para comprar 5 ou 10 milhões de testes novos para doar ao Ministério da Saúde, é uma iniciativa extraordinária para nós, mas muito normal em qualquer lugar onde a solidariedade humana é claramente exigida como agora.
Há fábricas que não estão com sua produção a todo vapor que estão fabricando máscaras, há produtores da rede de cosméticos que em vez de perfume estão produzindo sabão líquido. E isso terá que chegar às comunidades mais desfavorecidas sob pena de elas não poderem seguir as recomendações que nós estamos dando.
E falando em comunidades menos favorecidas, muitas das orientações que são dadas não podem ser seguidas por essas pessoas, como ficar em casa, lavar as mãos, e manter uma distância de dois metros de outra pessoa. Se a pessoa tem que trabalhar, se ela não tem acesso a saneamento básico e se ela mora num apartamento que tem um cômodo por exemplo. Que medidas essas pessoas podem tomar para se protegerem dentro da realidade em que elas vivem?
Eu não posso dizer a essas pessoas que se tiver uma pessoa de idade, um avô ou uma avó que fique sozinha num cômodo, porque elas vão me responder “Aqui moram cinco no mesmo cômodo.” A gente não tem como fazer retórica de uma coisa que não tem aplicabilidade prática. Não há como fazer, essa é a resposta.
Dentro do possível, que recomendações essas pessoas podem seguir?
Mantenha normas de higiene muito rígidas. Hidratação e alimentação, o máximo possível, adequadas.
E o que o poder público pode fazer também para ajudar a prevenção nesses locais?
Eu tenho uma visão muito particular. Eu não acho que isso caiba ao poder público, nesse momento. O poder público não aguenta. O SUS sozinho não aguenta. Ou nós ajudamos com a iniciativa privada ou o colapso será mais grave e mais rápido.
Por que a Covid-19 não é só uma “gripezinha”?
Ela começa com sintomas muito semelhantes a uma gripe comum. Mas num determinado número de pessoas – e, até agora, o que a epidemiologia tem mostrado é que esse grupo de pessoas são aquelas de mais idade e aquelas portadoras de doenças associadas ou prévias, como hipertensão arterial, diabetes descompensada, paciente imunossuprimido pelo uso de remédio ou com qualquer doença que diminua a imunidade, pacientes transplantados de órgão, paciente com HIV…
Quem morre de Covid-19 morre de pneumonia. A pneumonia que ela causa é muito grave e é diferente de uma pneumonia comum. Ela se caracteriza por um grau de inflamação muito mais grave evoluindo com fibrose precoce, evoluindo para síndrome de angústia respiratória do adulto, evoluindo para “sepsis”, necessitando ventilação mecânica porque o pulmão não funciona.
E com uma mortalidade muito alta nessas condições nesse grupo de pessoas que eu falei.
Sobre remédios, têm alguns estudos muito preliminares falando sobre remédios que já são conhecidos pra malária, ebola e HIV que podem negativar o coronavírus. Isso deve ser encarado como uma possível cura?
Não. A nossa posição brasileira foi de não recomendar nenhum tratamento. Há vários trabalhos publicados, há um número de papers publicado na literatura nesses últimos três meses que já ultrapassa 700. Desses, alguns são de avaliação, mas são estudos não randomizados, não controlados, não duplo-certos, com uma série de impedimentos. São cohorts, são séries de casos que testaram alguns antivirais, algumas medicações antimaláricas que são usadas em algumas doenças autoimunes. Mas as conclusões até o momento não permitem que nós recomendemos que haja esse ou aquele tratamento.
Nós optamos por esperar a publicação do grande estudo clínico que está sendo feito na China, o que deve ocorrer nos próximos dois meses, para verificação dessas associações medicamentosas. Essa é a nossa posição.
O quanto que o corte de recursos para pesquisa, para universidades e para o próprio SUS prejudicaram e fragilizar mais a gente para combater essa pandemia?
Agora nós estamos reivindicando recuperar alguns cortes havidos. Temos conseguido alguma coisa. Mas, sem dúvida nenhuma, os geneticistas e os virologistas brasileiros têm dado uma contribuição extraordinária. Desde as pesquisadoras de São Paulo que em três dias desvendaram o genoma que chegou ao Brasil, que era um genoma importado europeu.
E agora tem um grupo de pesquisadores multi-institucional envolvendo universidades de Minas Gerais, São Paulo, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Fiocruz, que está trabalhando no sentido de determinar o perfil epidemiológico e as mutações existentes.
Hoje nós já podemos dizer que o vírus que está circulando no Brasil já tem características brasileiras. Ou seja, ele já sofreu mutações que o adaptaram ao nosso país. O vírus brasileiro já tem cluster, ou conglomerados virais, que já o torna diferente daquele que circula na China ou mesmo nos países europeus.
Que cuidados as pessoas devem tomar com compras, alimentos que elas trazem de fora de casa e, até com pelos animais, cabelo e barba, para elas não se contaminarem?
Normas de higiene. Lavar com água e sabão as embalagens. Quando for pedir comida de entrega domiciliar, sempre ter cuidado de passar um paninho ou alguma coisa, de preferência descartável, nas embalagens que possa limpar aquela superfície, uma vez que o vírus pode se manter em superfícies durante algumas horas. Não está determinado por quantas horas, mas nós sabemos que pode viver algumas horas em superfícies lisas.
Tem muita gente que tem coronavírus e não sabe que tem, já que 80% dos infectados são assintomáticos. Tem algum teste caseiro que dê pra pessoa saber se tem coronavírus?
Não.
Então muita gente que não sabe se tem, principalmente jovens….
Nem vai saber. Portanto, a recomendação é igual para todos: sigam o isolamento social, não façam festa, não vão para bares. Esse é o momento em que todo mundo tem que colaborar. E cuidem dos seus velhos: pais, avós, padrinhos, tios, etc.
Cuidar significa ficar longe por enquanto, o máximo possível.
É, por enquanto, nada de abraços e nem beijinhos.
Muita gente perguntou sobre tomar vacina e doar sangue. Isso é seguro?
São duas coisas diferentes.
Para doar sangue, nenhum problema. As condições de biossegurança, tanto nos locais de doação, utilização de materiais, proteção da pessoa doadora, bem como da pessoa que vai receber sangue são 100% seguras. Portanto, nós conclamamos as pessoas que compareçam porque os bancos de sangue estão precisando muito de doador nesse momento. Rio de Janeiro, São Paulo, locais de grande atendimento e de grandes hospitais com grande demanda cirúrgica, inclusive, de terapia intensiva e para casos graves. Isso é uma coisa completamente segura.
Fila para tomar vacina é uma coisa é totalmente não recomendada. A nossa recomendação é que, quem vai tomar vacina vá, preferencialmente, usando máscara e que mantenha uma distância de um metro de uma pessoa para a outra enquanto espera.
Esta entrevista foi sugerida e escolhida pelos nossos Aliados. Quer participar? Seja Aliado da Pública!