Por Bruno Fonseca, Rafael Oliveira
Sob a gestão de Jair Bolsonaro, o governo tem sistematicamente certificado fazendas em cima de Terras Indígenas (TIs) na Amazônia Legal. Desde o início da gestão em 2019, foram 42 fazendas certificadas de maneira irregular, contrariando as proteções a essas terras previstas desde 2012 pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
Depois, a partir do último dia 22 de abril, quando a Funai publicou uma normativa autorizando a certificação de terras privadas em áreas indígenas não homologadas, o número explodiu: foram 72 novas certificações em menos de um mês — uma média de mais de duas por dia. Terras indígenas não homologadas são áreas que aguardam o decreto presidencial, última fase do processo de demarcação antes do registro definitivo. Até hoje, o governo Bolsonaro não homologou nenhuma terra indígena.
As conclusões são de um levantamento inédito da Agência Pública, que mostra que no atual governo já são 114 as fazendas com a certificação aprovada no sistema de gestão de terras (Sigef) e que passam em trechos de áreas indígenas não homologadas. Juntas, essas fazendas ocupam mais de 250 mil hectares de áreas indígenas.
Proprietários de terras são obrigados por lei a cadastrar suas propriedades no sistema [Sigef] do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) — sem a certificação, não é possível registrar a terra no cartório, tomar financiamentos legais ou licenciar obras, como hidrelétricas, e outras atividades, como pedidos de mineração.
Com a nova instrução normativa publicada pela Funai, todas as 235 terras indígenas em processo de demarcação no país deixam de ser um empecilho para o registro dessas propriedades. Também perdem proteção às áreas formalmente reivindicadas por grupos indígenas, as com portaria de restrição de uso, as de referência de índios isolados e as cedidas para usufruto indígena.
O levantamento mostra ainda uma outra situação preocupante: há mais de 2 mil propriedades privadas autodeclaradas no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (CAR/Sicar) que incidem em áreas indígenas em sete estados da Amazônia — 500 delas sob territórios onde vivem indígenas isolados. Segundo fontes consultadas pela reportagem, as autodeclarações feitas nesse sistema podem ser regularizadas pelo PL 2633/2020, apresentado em substituição à MP da grilagem e que poderá ser votado esta semana no Congresso.
Na avaliação da advogada Juliana de Paula Batista, do Instituto Socioambiental (ISA), a declaração obtida na Funai,associada ao PL 2633, pode facilitar a regularização de terras griladas. Eleito prometendo não demarcar nenhum centímetro de terra indígena, o governo Bolsonaro também apresentou recentemente o Projeto de Lei (PL) 191/2020, que tem como objetivo regularizar a mineração em terras indígenas. Em entrevista à Pública, o subprocurador-geral Antônio Carlos Bigonha afirmou que a efetivação do PL da mineração seria “como se o Estado decidisse legalizar o homicídio por não saber controlar”. Bigonha é o coordenador da Câmara de Revisão do Ministério Público Federal que medeia a relação de indígenas com o Estado.
Fazendas certificadas na gestão Bolsonaro atingem 12 TIs e 10 povos indígenas
As mais de 100 propriedades privadas com certificação autorizada nos últimos dois anos incidem sobre 12 terras indígenas nos estados do Pará, Mato Grosso e Maranhão. Nelas, vivem 10 etnias diferentes. Para se ter ideia, a média dos anos anteriores era de três fazendas certificadas irregularmente em áreas indígenas.
Segundo informado pelo Incra em resposta à Pública, cabe à Funai adotar providências para a retificação ou cancelamento das certificações de terras que incidam irregularmente em territórios indígenas. Procurada, a Funai não respondeu até a publicação.
A maior parte das fazendas certificadas se concentra na área da Amazônia legal no estado do Maranhão e a situação mais crítica é de três territórios indígenas vizinhos, que registram conflitos e assassinatos de indígenas: as terras Bacurizinho, Kanela Memortumré e Porquinhos dos Canela-Apãnjekra. A área das três passou a ser cortada por 74 fazendas certificadas entre 2019 e 2020, sendo que a maior parte delas foi aprovada pelo governo antes da Funai publicar a norma que autorizou certificar terras privadas em áreas não homologadas.
Todas as três terras já foram delimitadas, o que significa que tiveram os estudos aprovados pela presidência da Funai e publicados no Diário Oficial da União. A Kanela Memortumré já havia passado, inclusive, para o estágio de declarada, através de portaria do Ministério da Justiça que reconhece que o território deve ser marcado fisicamente, mas foi prejudicada por parecer do ex-ministro da Justiça Sergio Moro e retornou à Funai.
Já no Mato Grosso, há terras indígenas que têm quase metade da área ocupada por registros de fazendas. É esse o caso da terra Cacique Fontoura, em São Félix do Araguaia. A Fazenda Fontoura foi registrada e certificada no sistema federal no dia 23 de abril, um dia após a portaria da Funai. A maior parte da área da fazenda fica dentro da terra indígena, não fora.
A área é disputada há anos: em 2016, a Justiça Federal de Cuiabá julgou improcedente uma ação que pedia a retomada de posse de uma fazenda de quase 10 mil hectares dentro da terra indígena.
Donos de terras cobiçam 87% das TIs não homologadas na Amazônia, inclusive de indígenas isolados
Além das fazendas certificadas pelo Incra em áreas indígenas, 42 das 48 TIs não homologadas na Amazônia têm alguma parte do território invadido por registros de terras autodeclaradas no Cadastro Ambiental Rural (CAR), de responsabilidade do Serviço Florestal Brasileiro. Desde a posse de Bolsonaro, o órgão foi transferido para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).
Ao todo, 2.165 imóveis rurais autocadastrados no sistema passam em cima de terras indígenas nos estados do Acre, Amazonas, Pará, Rondônia, Mato Grosso, Tocantins e Maranhão. A maioria desses registros está aguardando análise, mas há sete deles com análise concluída, ou seja, sem pendências — segundo normas da Funai, quando incidir em terras indígenas o cadastro não pode ser liberado.
Uma dessas propriedades privadas analisadas sem pendência corta o território Menkü, do povo Myky, no Mato Grosso. A terra indígena é quase totalmente invadida por outras declarações de donos de terras que estão em análise.
“[Os] fazendeiros falam que a gente não precisa mais de terra, que já está de bom tamanho, só precisa trabalhar”, conta a liderança Tupy Myky. “A todo momento pedindo para nós desistirmos, que se a gente desistir eles estarão a nosso favor, vão em Brasília brigar com o governo para disponibilizarem recursos, maquinários. Mas a gente deixou bem claro que não, que vai lutar até onde der”, afirma.
Parte da terra Menkü já está homologada desde 1987, mas o processo foi questionado pelo povo Myky, que aguarda um reestudo que pode ampliar a área para 146 mil hectares.
Para Tupy, medidas como a instrução normativa da Funai são “anti-indígenas” e vão fortalecer os fazendeiros que disputam terras com seu povo. “Essa decisão da Funai e, principalmente, as falas que o presidente Bolsonaro sempre faz podem encorajar os proprietários a entrar na terra. Eles falam: ‘Se a gente fizer alguma coisa com os indígenas, a gente vai sair limpo’”, diz a liderança dos Myky.
Sete áreas onde vivem indígenas isolados são alvo de CAR por proprietários de terras, seis delas com restrição de uso garantida pela Funai. O levantamento mostra que já foram cadastrados no Sicar, o sistema online do CAR, mais de 500 imóveis rurais em cima de áreas onde vivem povos isolados.
A terra mais afetada é a Ituna/Itatá, no Pará. O território, que foi o campeão em desmatamento em 2019, segundo dados do Prodes/INPE, é quase todo coberto por registros privados.
No Mato Grosso, a reportagem encontrou centenas de terras privadas declaradas em cima das TIs Apiaká do Pontal, Kawashiva do Rio Pardo e Piripkura, onde vivem indígenas isolados. Em Rondônia, a pequena TI dos Tanaru, de 8 mil hectares, já tem mais de um terço da área coberta por registros de donos de terras.
Governo certifica fazendas em território Manoki, cobiçado por donos de terra
No estado do Mato Grosso, no território dos indígenas Manoki, oito fazendas foram certificadas junto ao Incra no Sigef após a Funai publicar a norma que deixou de proteger TIs não homologadas. As cinco fazendas possuem toda a área dentro da terra indígena. Além disso, boa parte do território dos Manoki está cortada por propriedades privadas autodeclaradas por seus donos que aguardam análise pelo governo no Sicar.
“Tem muita invasão de madeira, tiram muita madeira. Como é invasão, tacam fogo na mata e vão fazendo cerca, colocando gado, assim sucessivamente. Depois de gado, [entra a] agricultura e assim estão entrando lá”, conta Giovani Tapura, uma das lideranças da região. Em 2018, reportagem da Pública mostrou a luta dos Manoki contra os fazendeiros que invadem seu território e travam a demarcação.
Segundo Giovani, apesar da grande quantidade de conflitos na região, até 2018 os povos indígenas eram amparados por medidas da Funai. Com a eleição de Bolsonaro, o cenário começou a ficar ainda mais desfavorável para os Manoki. “A gente contava muito com o Ibama quando tinha invasão de madeireiro e hoje não, pro governo tanto faz. A Funai não é mais o que era. Para chegar à delimitação, não foi estudo e perícia de um dia, foram anos e anos. Em uma canetada, todos aqueles estudos antropológicos foram perdidos? O nosso começou de 1992 para cá, quase 30 anos”, diz.
No Tapajós, áreas sem homologação são tomadas por declarações de proprietários de terras
“Essa medida [da Funai] vem beneficiar aqueles que já invadiram a terra, que já estão dentro do território. Vem para enfraquecer os indígenas e fortalecer o agronegócio e as madeireiras que já invadiram os nossos territórios”, afirma a indígena arapium Auricélia Fonseca. Estudante de direito da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), ela é vice-coordenadora do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA), que representa 13 etnias de 18 territórios na região do Baixo Tapajós, em Santarém, Belterra e Aveiro, no Pará.
Segundo o levantamento da Pública as terras Maró, Cobra Grande, Bragança-Marituba e Mundukuru-Taquara, que ficam na região, tem 100% do território cobiçado por declarações de donos de terras. Todas as quatro terras já foram delimitadas; duas delas, declaradas.
No território Maró, por exemplo, ameaças de morte fizeram com que um dos caciques passasse a andar escoltado, desde que o povo conseguiu recuperar parte do seu território de madeireiros, segundo Auricélia.
Já na região do Médio Tapajós, Alessandra Munduruku, uma das principais lideranças indígenas femininas do país, afirma que o papel do presidente da Funai é “genocida”. “Eu e outras mulheres que estão na linha de frente, estamos defendendo o nosso território mais do que um cara que está sentado de gravata negociando as nossas terras. Ele não é digno de estar na Funai, ele não é digno de andar nas aldeias, ele não é digno nem de falar no nome dos povos indígenas porque ele tem sangue dos povos indígenas na mão”, afirma a primeira mulher presidente da Associação Indígena Pariri.
O maior território indígena não homologado na região, a Sawré Muybu, é alvo de seis terras privadas que foram autodeclaradas em cima de algum trecho da área indígena.
Na Sawré Muybu, os Munduruku também tentam frear o interesse de mineradores, já que a terra é a campeã em pedidos de mineração em TIs na última década. São 97 processos, representando mais de 14% de todos os pedidos na Amazônia, como revelou a Pública.
“A Funai vai existir para nos matar mais, como eles estão fazendo?”, questiona Alessandra. “Para nós, o que vale é a terra. Se o índio não tiver o território dele, ele fica doente, e é isso que a Funai está fazendo. Só que eles esqueceram que nós já resistimos mais de 520 anos. Nós vamos lutar para conseguir que nossas terras sejam demarcadas, ou com esse governo, ou com outro. Porque os governos passam, mas as nossas terras, não”, afirma.
Para lideranças indígenas, decisão da Funai vai aumentar conflitos no campo
A norma da Funai que permitiu a certificação de fazendas em terras não homologadas foi articulada pelo secretário de assuntos fundiários do Governo Federal, Nabhan Garcia. Ex-presidente da União Democrática Ruralista (UDR), ele apareceu em vídeo ao lado do presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier, comemorando a medida e afirmando que as TIs não homologadas eram consideradas terras indígenas por “uma questão ideológica” e de maneira “ilegal”.
Em março do ano passado, o Incra chegou a enviar para a Funai um projeto de normativa com efeito semelhante, propondo a retirada das TIs não homologadas do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef). À época, o então presidente do órgão indigenista posicionou-se contra a proposta, aprovando informação técnica e parecer contrários à medida. Franklimberg Ribeiro de Freitas foi demitido poucos dias depois, e em entrevista à Folha de S. Paulo afirmou que Nabhan Garcia “saliva ódio aos indígenas”.
Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a norma ataca os direitos indígenas e vai provocar um aumento dos conflitos por terra. “Há uma política genocida em curso e medidas administrativas vão agravar o conflito socioambiental, o conflito étnico-cultural, o conflito dos povos indígenas e desses posseiros que tentam a todo custo usurpar nossos territórios para diversos fins”, diz Dinamam Tuxá, vice-coordenador da Apib.
A situação levou a uma série de notas contrárias a medida da Funai. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Associação Brasileira de Antropologia (ABA), Associação de Servidores da Funai e Instituto Socioambiental repudiaram a instrução normativa. A deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR) apresentou uma proposta de decreto legislativo para sustar a nova portaria do órgão indigenista com o objetivo de “resguardar os direitos constitucionais dos povos indígenas”. A Rede Sustentabilidade também ajuizou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 679) contra a normativa no STF, mas o recurso foi negado pelo ministro Luiz Fux, sem julgamento do mérito. Outro partido, o dos Trabalhadores (PT), também entrou na Justiça contra a instrução. Quatro deputados petistas acionaram a 16ª Vara Federal de Brasília, em ação popular contra o presidente da Funai.
Já o Ministério Público Federal (MPF) solicitou que a medida seja analisada pelo STF e publicou em 29 de abril uma recomendação solicitando a revogação imediata da instrução normativa. Assinada por 49 procuradores de 23 estados, o documento considera a medida inconstitucional por criar “indevida precedência da propriedade privada sobre as terras indígenas”.
O próprio Supremo Tribunal Federal (STF) já considerou que o Estado deve proteger terras indígenas, mesmo sem decreto de homologação. Na última sexta-feira (15), o MPF de Mato Grosso ingressou com ação civil pública solicitando que Funai e Incra sejam obrigados a manter ou incluir todas as terras indígenas do estado no Sicar e no Sigef, sob pena de multa. Caso a Justiça atenda à solicitação, as TIs não homologadas e as demais áreas que eram protegidas antes da normativa da Funai voltam a ter proteção no estado. Segundo apurou a Pública, o objetivo é construir uma frente jurídica à nível nacional, e procuradores de outros estados brasileiros já estão trabalhando para ingressar com ações semelhantes.
Em 2017, o ministro Luiz Fux considerou inconstitucional a inclusão do termo “demarcadas” em trecho do Código Florestal que falava sobre terras indígenas, por considerar que “a demarcação e a titulação de territórios têm caráter meramente declaratório – e não constitutivo”.
Em 2013, trecho do acórdão da petição 388, relacionada ao caso da demarcação da TI Raposa Terra do Sol afirmou que “os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente ‘reconhecidos’, e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza declaratória, e não propriamente constitutiva”.
Metodologia
Para obter os dados, a reportagem consultou três bases públicas: a de Terras Indígenas da Funai; a de imóveis do Cadastro Ambiental Rural (CAR); e a de imóveis privados cadastrados no Sistema de Gestão Fundiária (Sigef). Consideramos, no cruzamento, apenas as TIs não homologadas, visto que a normativa da Funai liberou o registro de terras nessas áreas. Da base do CAR, foram considerados apenas os imóveis rurais (IRU) nos municípios onde existem TIs. E das propriedades cadastradas no Sigef, consideramos apenas as regularizadas e com status de certificado pelo sistema. Os resultados são a sobreposição das áreas selecionadas no CAR e no Sigef com as áreas de TIs. Todo o levantamento levou em consideração os oito estados da Amazônia Legal, mais parte do Maranhão.
A reportagem é parte do projeto da Agência Pública chamado Amazônia sem Lei, que investiga violência relacionada à regularização fundiária, à demarcação de terras e à reforma agrária na Amazônia Legal. O especial também faz a cobertura dos conflitos no Cerrado, o segundo maior bioma brasileiro.